quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O tradutor traduz o autor?


Quando um autor é bom a gente logo percebe. E todo mundo sabe, cada um tem seu jeito de escrever, o que obviamente explica o fato de alguns agradarem mais do que outros. Se estamos falando de textos em nossa língua, mesmo com as nuances regionais, seja qual for a região do planeta, ainda assim será a nossa língua.

E o que dizer dos autores estrangeiros? Em algum momento chega a informação de que fulano é um bom escritor e alguém decide publicá-lo em português (vamos fazer de conta que é simples assim). É evidente que as editoras contam com tradutores qualificados, pelo menos é o que se espera. Como garantir que o jeito especial do autor se expressar, a maneira como ordena suas frases que dá um sentido (ou vários) ao que pretende dizer será alcançada na tradução? Pois é, não é fácil, nada fácil. O tradutor é, de certa forma, um escritor. Aliás, muitos escritores conhecidos são ou foram tradutores. Aqui no estado temos e tivemos vários e, sem querer ser bairrista, creio que de boa qualidade em sua maioria.
Do meu mais profundo "achismo" vem a convicção de que o trabalho de tradução é tão desgastante que, mesmo sendo ele um escritor, não sobrará fôlego para escrever o seu próprio texto. Acredito que o tradutor gaste tanta energia e talento para reproduzir em sua língua o autor original, que pouco ou nada sobre para ele próprio.
E qual seria o maior dilema do tradutor durante a sua maratona profissional? Com certeza ocorre quando este se depara com uma palavra, situação ou expressão que, em hipótese alguma, teria correspondência em nosso idioma. É a hora em que o tradutor tem que ser infiel para ser fiel (estou aqui fazendo uso de uma expressão que o Sergio Faraco utilizou em uma palestra que tive a felicidade de assistir). Ou seja, para preservar a literariedade, a qualidade do autor original, o tradutor se vê obrigado a inventar ou, então, utilizar outra expressão que alcance o mesmo impacto. De tradução o Sergio Faraco entende muito, é dele a melhor versão em português de um livro do uruguaio Mario Arregui, "Cavalos do amanhecer" (L&PM), cujo título original é "Los dos caminhos" (onde estão os cavalos do título?). Mas lendo-se o livro, fica tudo muito claro (para se ter uma ideia da seriedade do trabalho, basta dizer que a tradução foi acompanhada de perto pelo Arregui, que concordou com as modificações). Por outro lado, querem ver como é difícil? Façamos o inverso. Basta pegar um texto, do Guimarães Rosa, por exemplo, e imaginá-lo em alemão, japonês, russo. É tarefa para muito poucos, realmente.
Bem, a verdade é que toda essa conversa acerca de traduções seria para falar do livro "O Tenente Quetange", de I. N. Tyniánov (Cosac & Naify). Isso porque a tradutora, Aurora Bernardini, resolveu de maneira muito mais eficiente o jogo de palavras que dá nome ao livro (e origina toda a confusão). O livro é muito bom e engraçado, e vou pedir que confiem em mim sem que precise explicar a razão. Vou usar do velho recurso de reproduzir um texto da contracapa e contar que isso seja suficiente para despertar o interesse pela história:
"Correm os últimos anos do século XVII e Paulo I ocupa o trono de todas as Rússias, quando um escrivão militar, sonolento e estabanado, altera por acidente o curso da História ou, pelo menos, de uma história ou, melhor dizendo, de duas histórias..."

Ocorre que este livro tem outra história muito interessante, relatada no quase-prefácio de Boris Schnaiderman (responsável por algumas das melhores traduções de Anton Tchékhov). Ele conta um pouco da obra de Tyniánov, de suas peculiaridades, entre as quais o fato de ter permanecido ileso, tanto física como profissionalmente, durante todos os anos de Stálin, o qual por muito menos mandava despachar para um gulag.
Abraço,
Nelson Safi

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Eu também queria ser


Alguém poderia alegar, e não sem um pouco de razão, que minha opinião é um pouco suspeita, já que falarei do livro de um amigo. Mas fazer o quê? Fingir que não o conheço, dizer que não li? Pelo contrário, li e gostei muito do Quero ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, 2010). Talvez devesse simplesmente dizer: eu também quero ser Reginaldo Pujol Filho. Só que estaria roubando a frase do Marcelino Freire, que "orelhou" o livro. Mas seria uma boa síntese, isso é verdade.
Pois bem, e o que fez o Reginaldo? Escreveu dez contos, cada um homenageando um escritor que ele gosta, ou que o influenciou (acredito que ambos). Claro que, em se tratando do Reginaldo, não é um texto lugar-comum e, óbvio, o humor está presente (digo isso porque, para muitos, para ser um bom texto tem que ser um dramalhão; o Reginaldo é um dos que provam que este conceito é ridículo).
Não tenho dúvida que o leitor, se já tiver lido um texto ou mais dos escritores homenageados, vai saborear muito melhor a leitura. E, se deixou de ler algum, acredito que também vá querer conhecer o original. A lista segue esta ordem: Miguel de Cervantes, Luigi Pirandello, Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo, Italo Calvino, Amílcar Bettega Barbosa, Machado de Assis, Gonçalo M. Carvalho, Mia Couto e Altair Martins. Em suma, só gente boa. Alguns contos gostei mais do que de outros, mas isso porque sinto o mesmo em relação aos autores; cada um terá os seus preferidos.
Gostaria de falar um pouco de cada um dos contos, mas bom mesmo é ler todos (se eu tentar explicar corro o risco de tirar a graça). Só não vou perder o gostinho de dar uma palhinha. Para isso, escolhi o início do conto Quero ser Machado de Assis:
"Desocupado leitor, a história é a seguinte, quer dizer, não, me perdoe. Não leve a mal o adjetivo desocupado da linha acima, não era exatamente no sentido, digamos, de vagabundo que eu queria falar. Era mais algo como, perceba, você, mas como posso explicar, observe, trata-se de estilo, compreende? Descontrair de uma forma contemporânea com quem está do outro lado, mas longe, longe, deveras longe deste narrador, porventura ofender você. Melhor começarmos assim:
Ocupado leitor - sim, admito, ocupado não chega a elogio, to­davia não ofende -, mas, ocupado leitor, precisamos correr, visto que as delongas acima já atrasam o andar da história e, afinal, é para ler histórias que o amigo tem um livro nas mãos.
Pois acelerarei..."

Além deste, o Reginaldo lançou, em 2007, seu primeiro livro de contos, Azar do personagem, e em 2009 organizou a ótima antologia Desacordo Ortográfico (ambos pela Não Editora)
Serviço:
Título: Quero ser Reginaldo Pujol Filho
Autor: Reginaldo Pujol Filho
Editora: Não Editora
Ano: 2010
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Abraço,
Nelson Safi

Contos de Lev Tolstói

Volto a escrever de uma publicação da Amarilys (Editora Manole). Em minha última crônica falei de "O duelo", do Anton Tchékhov. Agora é a vez de “A morte de Iván Ilitch e outras histórias”, de Lev Tolstói. Pois a Amarilys, de novo, está de parabéns. Outra vez um ótimo escritor, outra vez um livro muito bonito, agradável de ter nas mãos, folhear... Acho improvável que os livros digitais venham a ter esse fascínio. O Umberto Eco, ao que consta, pois ainda não li, escreveu a este respeito em seu livro “A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia”, mas não é este o assunto, nosso caso é o Tolstói.
Mas aproveitando a minha incapacidade de seguir um assunto sem escorregar por alguma vereda, aproveito para recomendar o excelente filme “A última estação”, que mostra as últimas semanas de vida de Tolstói, sob o ponto de vista de um jovem escritor, contratado para acompanhá-lo. Tem-se, a partir do filme, uma boa noção do quanto Tolstói representou para a literatura russa e mundial e, também, o quanto era querido por todos, seja pela sua literatura, pelas ideias que apregoava ou, simplesmente, pela firmeza de seu caráter. Por sinal, achei uma feliz coincidência ter lido este livro antes de assistir o filme. A atitude de Tolstói, ao abandonar a sua propriedade, em Isnaia Poliana, lembra muito o comportamento de seus personagens em seu afastamento do mundo material e busca da liberdade espiritual.
Voltando ao livro, tal como o de Tchékhov, anteriormente citado, também vem prefaciado por Elena Vássina. Repito o que havia dito para o livro do primeiro, adaptando para o de Tolstói: um texto muito bom e agradável, e que ajuda na contextualização da obra em relação à sua época e ao conjunto da obra tolstoiniana. O livro é composto por quatro contos: “A morte de Iván Ilitch”, “Senhor e servo”, “O prisioneiro do Cáucaso”, “Deus vê a verdade, mas custa a revelar”.
“A morte de Iván Ilitch” é uma história de arrepiar. Já pelo título sabemos que o que virá pela frente não será um mar de rosas, nem seria de se esperar, em se tratando de Tolstói. Essa pequena novela começa com a notícia da morte de Iván Ilitch, e que se transforma, logo a seguir na descrição da vida do personagem, sua ascensão social, suas preocupações egoístas, até culminar com o pequeno acidente que provocará a sua doença e morte. E, no caminho até esta, o sentimento de “uma solidão tamanha, que mais completa que esta não poderia haver outra em lugar algum, nem no fundo do mar nem nas entranhas da terra”.
“Senhor e servo”, de certa forma, tem uma tessitura semelhante a “A morte de Iván Ilitch”. Um negociante, Vassili Andrêitch, a despeito do clima pouco convidativo, insiste em sair para fechar um negócio, a compra de um bosque na propriedade vizinha, que há muito o interessa. Nessa empreitada, leva com ele o seu serviçal, Nikita, e, puxando o treno, seu melhor cavalo, Baio. Os três empreendem uma jornada que mudará definitivamente suas vidas.
A terceira história, o conto “O prisioneiro do Cáucaso” é de criação anterior a “A morte...” e “Senhor e servo”. Narra a história de um soldado russo que servia no Cáucaso, o qual, a fim de atender o pedido de sua velha mãe, resolve retornar à casa desta a fim de casar-se. No caminho para o antigo lar, tão logo sai do forte onde servia, é feito prisioneiro por soldados tártaros. Decidido a não ceder aos seus inimigos e pedir que a família pagasse o seu resgate, escolhe fugir de sua prisão assim que surgisse uma oportunidade, o que só viria a ser possível graças ao fato de ser uma boa pessoa. Parece improvável? Leia e descubra.
Por fim, o conto “Deus vê a verdade, mas custa a revelar”. É a história de um jovem comerciante que, acusado de um crime que não cometeu, é mandado à Sibéria a fim de cumprir a sua pena. Impossibilitado de provar a sua inocência, só lhe restava rezar a Deus, único espectador, porém incapaz de testemunhar a seu favor.
Serviço:
Título: A morte de Iván Ilitch e outras histórias
Autor: Lev Tolstói
Editora: Amarilys (Editora Manole)
Ano: 2011
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Abraço,
Nelson Safi

Os duelistas

Não se engane, esta quase crônica não falará do livro "Os duelistas", do Joseph Conrad (que teve adaptação do Ridley Scott no cinema). O assunto será "O duelo", uma rara novela do Anton Tchékhov. Logo de início o livro chamou a minha atenção pelo seu projeto gráfico (nem sei se estou falando certo, vou logo pedindo desculpas a quem é profissional na área). Então, retomando, o livro é muito bonito: capa, contracapa, papel, fonte, etc. Parabéns ao Hélio de Almeida, responsável pela capa, projeto gráfico e ilustrações. O livro agrada à visão e ao tato.
Antes disso, há o fato principal de ser uma obra do Tchékhov, o que para mim, independentemente do projeto gráfico, é motivo mais que suficiente para me interessar pela história (o livro é muito bonito mesmo, não poderia deixar de comentar este aspecto primeiro). Outro fato interessante é que se trata de uma novela, nada usual em se tratando deste autor. A história foi publicada, originalmente, em forma de folhetins em onze edições do jornal Nóvoie Vriémia (de propriedade de seu amigo e editor Aleksei Suvórin).
O livro vem prefaciado por Elena Vássina, o que sempre ajuda na contextualização da obra em relação à sua época e ao conjunto da obra tchekhoviana. Leio os prefácios com a mesma satisfação de ler a própria história. Outro dado relevante é o fato de ser uma tradução diretamente do russo, que torna ainda mais interessante a leitura. É dele, o prefácio, que roubei o trecho abaixo, para dar uma ideia aproximada do livro:
"Em O duelo, o zoólogo Von Koren, entusiasmado com as ideias do darwinismo social, gostaria de exterminar em prol da humanidade Laiévski, o sujeito depravado e perverso. O antagonismo entre os personagens chega a tal ponto que os dois se enfrentam em duelo."
A composição dos personagens, o crescimento da tensão entre eles, que leva ao duelo que dá título ao livro, é o grande motor da história. Quando fui chegando ao fim bateu uma sensação estranha. Por um lado, de estar louco para saber como o Tchékhov resolveria a trama; por outro, de querer saborear o livro por mais tempo.
Serviço:
Título: O duelo
Autor: Anton Tchékhov
Editora: Amarilys (Editoria Manole)
Ano: 2011
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Abraço,
Nelson Safi

domingo, 25 de novembro de 2012

A literatura é edificante?


Li um texto muito bom no "estadão virtual", escrito pelo Mario Vargas Llosa; publicado originalmente no El País, Espanha (veja aqui). Ele comentou a decisão do governo francês de tirar da lista de comemorações nacionais o nome do escritor Louis-Ferdinand Céline, pelo fato de este ter ideias antissemitas. A crítica de Llosa se deve ao fato de que a reverência era dada à qualidade da produção literária de Louis-Ferdinand e sua relevância no contexto da literatura francesa. Ou, traduzindo para um linguajar bem popular, o cara é podre, mas o trabalho dele não, e são duas coisas bem distintas.
Feito o prólogo, quero dizer que gosto muito quando acontece de se ter as duas avaliações positivas; ou seja, a obra é de qualidade e o caráter do escritor segue a mesma linha. Com certeza daria para citar vários nomes, mas o que mais aprecio entre estes é o Tchékhov (Anton Pávlovitch Tchékhov). Até conhecer o Charles Kiefer (outro que se encaixa na dupla avaliação positiva) eu havia lido uns dois ou, quando muito, três contos do médico russo. E não fazia a menor ideia do quanto ele foi genial. Acredito que, depois da orientação do Charles, devo ter lido quase tudo que existe de traduzido deste escritor. E não foram apenas os contos, também suas peças teatrais e suas cartas tinham um grande valor literário. No "Cartas a Suvorin - 1886-1891" (Edusp, 2002) tem-se uma amostra da sensibilidade que o diferenciava dos demais escritores. Como exemplo, coloco este trecho de uma carta em que  falava de um aspecto da vida no campo, onde esteve passando suas férias de verão:
"... Os silvos, os arquejos, os roncos da máquina, surdos como os de um pião, que se fazem ouvir no mais duro da lida, o ranger das rodas, o andar preguiçoso dos bois, as nuvens de fumaça, os rostos suados e negros de quase cinquenta homens – tudo isso ficou gravado na minha memória como o Padre-nosso. E, desta vez também, passei horas a fio na debulha e senti-me extremamente bem. A máquina, quando trabalha, parece viva, tem uma expressão astuta, brincalhona, ao passo que as pessoas e os bois, ao contrário, parecem máquinas..."
E quem foi Tchékhov fora da literatura? Homem de origem simples, formou-se em medicina e a tinha como atividade principal. Dizia que a medicina era sua esposa e a literatura, sua amante (curiosamente, era a literatura que lhe garantia um aporte adicional de renda). Teve intensa atividade de cunho social e esteve envolvido no trabalho de construção de escolas. Em 1890, aos trinta anos, partiu para a ilha de Sacalina, local de prisões mantidas pelo regime czarista no mar do Japão, empreitada que o fez atravessar a Rússia pela Sibéria até chegar no oceano Pacífico. Lá estando, entrevistou todos os moradores-detentos, o que lhe possibilitou um retrato detalhado da situação e características do sistema prisional russo. De volta a Moscou, elaborou um dos trabalhos mais completos sobre o assunto, cujo impacto foi suficiente a ponto desse sistema ser revisto pelo regime czarista.
Em seu precoce final de vida, seus contos cresceram em tamanho e densidade e perderam o humor que os caracterizava. O livro "O assassinato e outras histórias" (Cosac&Naify, 2002) contém seis contos desta fase, escritos entre seus trinta e quatro e quarenta anos de idade (morreu enfraquecido pela tuberculose, em 1904, aos quarenta e quatro anos). Retiro um trecho do conto "O assassinato", uma história que, certamente, começou a ser germinada em 1890, quando de sua estada em Sacalina; portanto, cinco anos antes de ser escrita, em 1895:
"Certa noite, na enseada de Dveski, na ilha de Sacalina, um vapor estrangeiro ancorou e solicitou carvão. Pediram ao comandante que esperasse amanhecer, mas ele não queria esperar nem uma hora, dizendo que, se o tempo piorasse durante a noite, corria o risco de ter de partir sem carvão. No estreito da Tartária, o tempo pode mudar abruptamente em meia hora, e então o litoral de Sacalina torna-se perigoso. O ar havia esfriado e já se formavam ondas bastante fortes.
Da prisão de Voievódskaia, a mais miserável e severa das prisões de Sacalina, despacharam um grupo de detentos para uma mina. Tinham de encher barcaças com carvão, depois rebocá-las com uma lancha a vapor até o navio, que estava a mais de meia versta* da margem, e lá seria preciso começar o transbordo do carvão – um trabalho torturante, enquanto a barcaça se entrechoca com o navio e os trabalhadores mal conseguem se manter de pé, por causa do enjoo..."
* Versta: unidade de medida russa, equivalente a 1,067 Km.
Sei que poderia ter escolhido um trecho de outro conto, que fosse mais alegre ou, até mesmo, cativante. Procurei apenas mostrar o que faz dele, para mim, um escritor especial: um talento extraordinário para escrever e um caráter da mesma envergadura deste talento.


Abraço,
Nelson Safi

Los Angeles Lakers x New Jersey Nets

O ano é 1992, estamos na década de ouro da liga profissional de basquete dos EUA, a NBA. Final de jogo no Fórum de Inglewood, em Los Angeles, vitória do Lakers sobre o Nets. Os jogadores conversam entre si enquanto se dirigem aos seus vestiários, repórteres os entrevistam aqui e acolá. O pivô Vlade Divac, do Lakers, tenta brincar com seu ex-compatriota Drazen Petrovic, ala-armador do Nets, que o cumprimenta de forma protocolar, vira-se e segue para o vestiário dos visitantes.
Para compreender esta cena precisamos voltar um pouco mais no tempo. Em 1986 Petrovic transferiu-se para a liga profissional norte-americana, um dos primeiros a entrar naquele clube fechado. Foi contratado pelo Portland Trail Blazers, mas não deslanchou como esperava, ele que foi considerado o melhor jogador europeu de todos os tempos. Divac, seu colega na seleção iugoslava, transferiu-se em 1989 para o Los Angeles Lakers (o segundo europeu na NBA). Teve mais sorte em sua adaptação, mesmo com a difícil incumbência de substituir o mitológico Kareem Abdul-Jabbar; seu jogo de alta técnica e sua simpatia logo conquistaram o time e a torcida, apesar do inglês macarrônico. Petrovic telefonava diariamente para Divac, chorando suas mágoas por não conseguir o merecido espaço. Divac, ao contrário, estava feliz em seu clube e numa cidade onde o frio não existia. Vamos pular para 1990, Campeonato Mundial de Basquete na Argentina (a fase final foi disputada no Luna Park, um templo do esporte em Buenos Aires). A Iuguslávia já havia sido bronze no Mundial da Espanha (1986), prata na Olimpíada de Seul (1988) e ouro no Eurobasket (1989). Era um time jovem e unido, que estava junto há bastante tempo. Entretanto, fora do esporte, os ventos vinham mudando na Iugoslávia, onde alguns dos antigos territórios eslavos que compunham o país mostravam seu desejo de independência, em especial a Croácia. A final do campeonato foi uma revanche contra a URSS, vencedora na Espanha, vitória fácil dos iuguslavos por 92 a 75. Após o apito de final de jogo, Petrovic corre para abraçar seu amigo Divac. Durante a comemoração alguns torcedores, com bandeiras da Croácia, entram na quadra e se aproximam dos atletas. O sérvio Divac, então, comete o grande erro de sua vida, arranca a bandeira croata das mãos do torcedor e a joga longe, dizendo que ali eram todos iuguslavos. O croata Petrovic observa sua atitude, como que desapontado. A partir dali a amizade entre os dois não existiria mais. A imprensa croata transformou Divac em um grande vilão. Não muito depois iniciaram-se os conflitos armados entre os dois povos, com atrocidades de ambas as partes.
E o que a amizade entre Vlade Divac e Drazen Petrovic tem a ver com a literatura? Diretamente, nada. Indiretamente, tudo a ver com o romance "O pintor de batalhas", de Arturo Pérez-Reverte (Companhia das Letras; 2008). O livro conta a história do fotógrafo correspondente de guerra Andrés Faulques, que depois de trinta anos vivenciando diversos conflitos em todos os continentes, adquire um velho castelo na Espanha, sua terra natal, e decide criar um mural com algumas das principais batalhas, que passaram por suas lentes e continuam a acontecer em sua memória. Como ele dizia, pretendia pintar a essência da guerra.
É um livro com ingredientes para agradar a diversos gostos. Em primeiro lugar, uma trama muito boa. Afinal, por que Andrés, um fotógrafo com grande reconhecimento e prestígio pelo seu trabalho, decide levar uma vida de reclusão enquanto trabalha em seu mural? Quem é e qual o propósito de Ivo Markovic, que visita o pintor em seu castelo e com quem trava longas e instigantes conversas?
Para apreciadores das artes plásticas, vale para conhecer ou recordar os quadros que inspiraram o protagonista (graças à internet, santo Google, conheci diversos quadros que o inspiraram e pude constatar o quanto estão relacionados às batalhas vivenciadas pelo fotógrafo). Aos apreciadores de fotografia interessa pela apresentação das técnicas empregadas nas diversas situações de combate (o que nos permite enxergar a cena e os efeitos fotográficos obtidos).
Gosto muito do Arturo Pérez-Reverte e recomendo seus livros (leiam também "O mestre de esgrima" e "O clube Dumas", entre outros, também da Companhia das Letras). Desconhecia, a seu respeito, que ele próprio foi um fotógrafo de guerras. Assim, muito do que é retratado neste livro vem de sua experiência pessoal. É um romance de ficção, mas com fortes elementos autobiográficos. Para o meu gosto foi o seu melhor livro escrito até hoje.
Observação: vale a pena, também, assistir o documentário "Once brothers - A história de Vlade Divac e Drazen Petrovic" (produção da ESPN).
Abraço,
Nelson Safi

Mario Vargas Llosa


É a primeira vez que acontece, ter opinião formada sobre o ganhador do Nobel de literatura. O inédito, neste caso,  é esse ganhador ser um escritor de quem já li quase toda obra antes do prêmio. Pelo que lembro, todos os outros ganhadores só fui ler depois de serem agraciados, até mesmo o Gabriel Garcia Márquez e o José  Saramago. Poderia simplesmente dizer que o prêmio fez justiça e encerrar por aqui, já que o Nobel, sozinho, é referência suficiente. Mas este é apenas o primeiro parágrafo, tenho umas linhas a mais para argumentar.
Primeiramente o óbvio, o prêmio chegou a um autor que há muito deveria ter sido contemplado. Acredito que ninguém achou o resultado injusto. Ultimamente a "acadimia" sueca vinha premiando autores que, na minha opinião de consumidor de livros, não mostraram a que vieram. Mas não estou aqui para discutir critérios de premiações, e esse assunto foi bem divulgado à época do Prêmio Jabuti. Gosto muito dos escritores latino-americanos, dele em especial, por retratarem nosso continente e história. E a identificação é fácil, nossos cotidianos foram muito semelhantes.
Mas qual seria a razão por eu gostar tanto do que ele escreve? Não vou repetir aqui o que muitos críticos (comentadores?) literários já devem ter feito, dissertar sobre os recursos estilísticos do autor (e com mais competência do que eu teria feito). O que posso dizer é que o escrevinhador é um grande contador de histórias. E tanto faz se são narradas na primeira ou na terceira pessoa, sempre sou envolvido por elas. O que as faz tão boas é a sempre competente construção dos personagens. Nenhum é caricato, todos têm a sua importância e, o principal, é impossível ficarmos alheios às suas existências (aliás, são tão reais quanto nós mesmos, talvez até mais).
Para encerrar, é claro que alguns romances são melhores que outros, tenho os meus preferidos. Entre eles está A Guerra do Fim do Mundo. Quem poderia acreditar que fosse um peruano o responsável pelo melhor romance que já se publicou sobre a Guerra de Canudos. Transcrevo o primeiro parágrafo do livro:
"O homem era alto e tão magro que parecia sempre de perfil. Sua pele era escura, seus ossos proeminentes e seus olhos ardiam com fogo perpétuo. Calçava sandálias de pastor e a túnica azulão que lhe caía sobre o corpo lembrava o hábito desses missionários que, de quando em quando, visitavam os povoados do sertão batizando multidões de crianças e casando os amancebados. Era impossível saber a sua idade, sua procedência, sua história, mas algo havia em seu aspecto tranquilo, em seus costumes frugais, em sua imperturbável seriedade que, mesmo antes de dar conselhos, atraía as pessoas."


Abraço,
Nelson Safi

Os lusíadas; e os lusófonos também


Um dia desses resolvi postar, no blog do trabalho, umas dicas de leitura de escritores lusófonos. Não era para ser muita coisa, mas acabou dando nisso que está aqui.
Uma das grandes vantagens de escritores lusófonos é a de ler o texto em seu original, sem a interferência de um tradutor (claro, de vez em quando é preciso da ajuda de um dicionário) É também uma oportunidade para constatar a beleza da língua.
De início, para quem gosta de fazer um test drive, uma boa pedida é a antologia de contos "Desacordo ortográfico" (Não Editora), organizada pelo meu amigo Reginaldo Pujol Filho. Ali pode-se encontrar portugueses, obviamente, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos e, de quebra, brasileiros. Começa com um conto do L. F. Verissimo, “Mais palavreado”, uma ótima brincadeira com o vocabulário. Tem também o Ondjaki (não me perguntem como se pronuncia esse nome), com “O cheiro do mundo”; o primeiro dia de um menino na escola. Enfim, um monte de coisas boas (o conto "Amor aos pedaços", do Reginaldo, é um dos meus favoritos). É muito agradável constatar que a prosa portuguesa, que soa muito bem aos ouvidos, ganhou um colorido especial por terras africanas.
Bom, peguei alguns livros, que gosto bué, como diriam os angolanos, para comentar. Começo pelo "Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto" (Cia. das Letras), do Mário de Carvalho. O livro é de um sarcasmo corrosivo, narra "a comédia de toda geração portuguesa – aquela que chegou à vida adulta durante a redemocratização de Portugal, a partir da revolução de 25 de abril de 1974. O protagonista, um burocrata cinquentão, vê seus projetos de vida fracassarem um por um. Relegado na empresa, que passa por um processo de modernização, toma a primeira decisão drástica da sua vida: entrar para o Partido Comunista". Difícil tentar convencer alguém de que um livro é bom, apenas transcrevendo um pedacinho de sua orelha. Mas podem crer, vale a pena.
"Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra" (Cia. das Letras) foi o primeiro romance que li do escritor moçambicano Mia Couto. Apesar do título, que me pareceu pretensioso, aceitei a dica da Carla (a meiga), e o levei para casa. Depois deste enfileirei mais três, pois achei a sua escrita mágica. Se antes falei que a prosa portuguesa soa bem aos ouvidos, a dele, além disso, adiciona cores e sabores. Grande parte de seus romances e contos retrata um conflito bastante presente na África, o passado colonial e a reconstrução pós-revolucionária (não pensem, com isso, que encontrarão ali uma literatura panfletária ou um ranço terceiro-mundista, no entanto, essa vivência agrega em sua literatura). Depois dessa quase imersão, busquei em minha biblioteca uma velha antologia de contos moçambicanos que herdei do meu pai. A seleção foi realizada pelo Ricardo Ramos, filho do Graciliano. E lá estava ele, Mia Couto, um iniciante, e eram dele os melhores contos da seleção.
Pertinho dali, em Angola, temos o escritor Ondjaki, de quem tive o prazer de ler "Avó dezanove e o segredo do soviético" (Cia. das Letras), também uma sugestão da Carla, mencionada antes. A história, narrada por uma criança, passa-se em Luanda, logo após a revolução, e conta a construção do mausoléu para o falecido presidente Agostinho Neto (o qual ficou conhecido como Foguetão; o mausoléu, não o Agostinho Neto). Um trecho da orelha:
"Em Luanda, depois da independência de Angola, mas ainda com a presença de estrangeiros tão diferentes entre si – como portugueses, cubanos e soviéticos –, moradores de um pequeno bairro se veem em meio ao turbilhão da história. A fantasia da infância e a crueza da política se cruzam nesta narrativa em que a imaginação de um menino consegue, ao menos no plano da fabulação, vencer a avalanche da realidade".
Estou quase no fim, então não posso deixar de mencionar o angolano José Eduardo Agualusa, do qual  terminei um romance (e já li alguns contos excelentes), “As mulheres do meu pai”, uma espécie “road movie” (road book, existe isso?).
Poderia dizer que deixei o melhor para o final, mas tudo é uma questão de gosto. Ele ficou para o fim por ser o mais famoso.  Enfim, deixei para o final o Saramago, recentemente falecido. Redundância dizer que ele é bom. Para quem nunca o leu, recomendo um contato mais ameno. Sugiro o "Conto da ilha desconhecida", uma história breve, cerca de quatro horas de leitura, se tanto. Por aí tem-se uma ideia de sua prosa pouco usual, de parágrafos enormes, e também da fineza de sua ironia. Depois, mantendo a linha irônica, mas "adensando" um pouquinho, "As intermitências da morte" (a história de um país onde as pessoas param de morrer). Pronto para ir adiante? Experimente "História do cerco de Lisboa"; um revisor de uma editora retira, propositalmente, a palavra "não" do livro de história em que está trabalhando (a do cerco de Lisboa, pelos mouros). A simples supressão da palavra altera o rumo dos acontecimentos. Convidado pelo editor, aceita o desafio de reescrever a história conforme o resultado de sua ação. Ficaram curiosos? Ele não recebeu o Nobel por acaso (por sinal, seu discurso em Estocolmo, quando recebeu o prêmio, é emocionante, se alguém se interessar devo tê-lo guardado, algures no HD do meu "tip-top"). Exceto o "Memorial do convento" (excelente romance), todos os livros do Saramago foram editados pela Cia. das Letras (mas posso estar enganado, é claro).
Bom, se tudo correr bem (traduzindo: se eu vencer a minha preguiça e escrever) terei outras dicas de leitura no próximo mês.
Abraço,
Nelson Safi

Começo ou recomeço?

A origem deste blogue são os textos que publiquei, pela primeira vez, no blogue da Palavraria, em sua seção de crônicas (Crônicas da Palavraria). Minha ideia era escrever sobre livros que tivesse gostado. Pensava que alguém poderia, quem sabe até, também se interessar na sua leitura.
Neste ínterim criei o meu próprio blogue, o Conversa com o vácuo, e coloquei essas crônicas ali, junto com alguns de meus contos. E agora resolvi que contos e crônicas deveriam ter espaços próprios, por isso as crônicas vieram para cá.