terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Cães da Província ou Encontro com Qorpo-Santo


Porto Alegre, século XIX. A capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ainda está longe de ser considerada uma cidade grande, tampouco aprazível para se morar. Está concentrada no entorno da rua da Praia, ou rua da Graça, como também era conhecida, e da praça da Matriz, onde se concentram os Poderes: a igreja da matriz e o palácio do governo. E, em frente aos dois poderes, cruzando a praça, o teatro São Pedro, que, com apenas uma década de vida, muitas companhias dramáticas, líricas e cômicas já trouxe para as pessoas de bem da orgulhosa cidade.
A partir deste núcleo se espalham as moradias e o comércio da cidade tranquila e laboriosa, onde todos praticamente se conhecem. Por baixo dessa aparência bucólica, porém, como um rio subterrâneo, existe outro mundo: bebedeiras, assaltos noturnos e degolas, homens que se vestem de mulher, tesoureiros que se locupletam, enfim, um lado obscuro a macular a leal e valerosa capital da província.
Assis Brasil (Luiz Antônio de) tem todas as virtudes de um bom escritor. Em primeiro lugar, começa com um trabalho de pesquisa histórica bastante detalhado, o que nos permite ter uma imagem clara da época em que se passa o romance, como se estivéssemos ali, participando do cotidiano da cidade, com suas cenas e odores. A seguir, pela apresentação dos personagens. Somente bons escritores compõem personagens verossímeis, dos quais conseguimos inferir seu caráter, suas angústias e alegrias. Nenhum é caricato, nenhum está sobrando; todos estão perfeitamente ajustados ao enredo.
E o que se passa, afinal? Em meio à vidinha medíocre da província, dois fatos perturbam a sua ordem. Por um lado, os desaparecimentos não explicados de alguns cidadãos, que ficou conhecido como os crimes da rua do Arvoredo. Episódio macabro da história porto-alegrense, no qual, diziam, as vítimas, depois de esquartejadas, teriam virado linguiça pelas artes do assassino, açougueiro que tinha seu estabelecimento nesta rua. De outro lado está José Joaquim de Campos Leão, autointitulado Qorpo-Santo. Ex-comerciante, ex-professor, poeta, dramaturgo, e, para a maioria dos porto-alegrenses, um lunático. Qorpo-Santo diz o que pensa e se comporta de acordo com o que pensa. Separado, trava um embate jurídico contra a ex-esposa, a qual deseja que ele seja interditado judicialmente, de maneira que não possa administrar seus bens. Um embate que extrapola a esfera doméstica e passa a ser de interesse de toda a população.
O talento de Assis Brasil se observa na capacidade de unir dois episódios tão díspares da história da cidade, embora contemporâneos, e juntá-los de forma tão coesa, de maneira que se possa conhecer e entender um pouco da obra de Qorpo-Santo, cujo trabalho e relevância para o teatro só veio a ser reconhecido quase cem anos depois de sua morte.
Como todo bom livro que se preza, este me deixou com vontade de ler mais. Para matar minha curiosidade acerca da obra de Qorpo-Santo, felizmente, existe o site Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br), onde se pode encontrar toda a obra deste e de outros autores disponíveis para download.
A edição que li, da qual aparece a imagem abaixo, é da Mercado Aberto, editora que já não está entre nós. As edições mais recentes são da L&PM Editores.

Abraço,
Nelson Safi