Porto
Alegre, século XIX. A capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
ainda está longe de ser considerada uma cidade grande, tampouco aprazível para
se morar. Está concentrada no entorno da rua da Praia, ou rua da Graça, como
também era conhecida, e da praça da Matriz, onde se concentram os Poderes: a
igreja da matriz e o palácio do governo. E, em frente aos dois poderes,
cruzando a praça, o teatro São Pedro, que, com apenas uma década de vida, muitas
companhias dramáticas, líricas e cômicas já trouxe para as pessoas de bem da
orgulhosa cidade.
A
partir deste núcleo se espalham as moradias e o comércio da cidade tranquila e
laboriosa, onde todos praticamente se conhecem. Por baixo dessa aparência bucólica,
porém, como um rio subterrâneo, existe outro mundo: bebedeiras, assaltos
noturnos e degolas, homens que se vestem de mulher, tesoureiros que se
locupletam, enfim, um lado obscuro a macular a leal e valerosa capital da província.
Assis
Brasil (Luiz Antônio de) tem todas as virtudes de um bom escritor. Em primeiro
lugar, começa com um trabalho de pesquisa histórica bastante detalhado, o que
nos permite ter uma imagem clara da época em que se passa o romance, como se
estivéssemos ali, participando do cotidiano da cidade, com suas cenas e odores.
A seguir, pela apresentação dos personagens. Somente bons escritores compõem
personagens verossímeis, dos quais conseguimos inferir seu caráter, suas
angústias e alegrias. Nenhum é caricato, nenhum está sobrando; todos estão
perfeitamente ajustados ao enredo.
E
o que se passa, afinal? Em meio à vidinha medíocre da província, dois fatos
perturbam a sua ordem. Por um lado, os desaparecimentos não explicados de
alguns cidadãos, que ficou conhecido como os crimes da rua do Arvoredo.
Episódio macabro da história porto-alegrense, no qual, diziam, as vítimas,
depois de esquartejadas, teriam virado linguiça pelas artes do assassino,
açougueiro que tinha seu estabelecimento nesta rua. De outro lado está José
Joaquim de Campos Leão, autointitulado Qorpo-Santo. Ex-comerciante,
ex-professor, poeta, dramaturgo, e, para a maioria dos porto-alegrenses, um
lunático. Qorpo-Santo diz o que pensa e se comporta de acordo com o que pensa.
Separado, trava um embate jurídico contra a ex-esposa, a qual deseja que ele
seja interditado judicialmente, de maneira que não possa administrar seus bens.
Um embate que extrapola a esfera doméstica e passa a ser de interesse de toda a
população.
O
talento de Assis Brasil se observa na capacidade de unir dois episódios tão
díspares da história da cidade, embora contemporâneos, e juntá-los de forma tão
coesa, de maneira que se possa conhecer e entender um pouco da obra de
Qorpo-Santo, cujo trabalho e relevância para o teatro só veio a ser reconhecido
quase cem anos depois de sua morte.
Como
todo bom livro que se preza, este me deixou com vontade de ler mais. Para matar
minha curiosidade acerca da obra de Qorpo-Santo, felizmente, existe o site
Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br),
onde se pode encontrar toda a obra deste e de outros autores disponíveis para
download.
A
edição que li, da qual aparece a imagem abaixo, é da Mercado Aberto, editora
que já não está entre nós. As edições mais recentes são da L&PM Editores.
Abraço,
Nelson
Safi