domingo, 25 de novembro de 2012

A literatura é edificante?


Li um texto muito bom no "estadão virtual", escrito pelo Mario Vargas Llosa; publicado originalmente no El País, Espanha (veja aqui). Ele comentou a decisão do governo francês de tirar da lista de comemorações nacionais o nome do escritor Louis-Ferdinand Céline, pelo fato de este ter ideias antissemitas. A crítica de Llosa se deve ao fato de que a reverência era dada à qualidade da produção literária de Louis-Ferdinand e sua relevância no contexto da literatura francesa. Ou, traduzindo para um linguajar bem popular, o cara é podre, mas o trabalho dele não, e são duas coisas bem distintas.
Feito o prólogo, quero dizer que gosto muito quando acontece de se ter as duas avaliações positivas; ou seja, a obra é de qualidade e o caráter do escritor segue a mesma linha. Com certeza daria para citar vários nomes, mas o que mais aprecio entre estes é o Tchékhov (Anton Pávlovitch Tchékhov). Até conhecer o Charles Kiefer (outro que se encaixa na dupla avaliação positiva) eu havia lido uns dois ou, quando muito, três contos do médico russo. E não fazia a menor ideia do quanto ele foi genial. Acredito que, depois da orientação do Charles, devo ter lido quase tudo que existe de traduzido deste escritor. E não foram apenas os contos, também suas peças teatrais e suas cartas tinham um grande valor literário. No "Cartas a Suvorin - 1886-1891" (Edusp, 2002) tem-se uma amostra da sensibilidade que o diferenciava dos demais escritores. Como exemplo, coloco este trecho de uma carta em que  falava de um aspecto da vida no campo, onde esteve passando suas férias de verão:
"... Os silvos, os arquejos, os roncos da máquina, surdos como os de um pião, que se fazem ouvir no mais duro da lida, o ranger das rodas, o andar preguiçoso dos bois, as nuvens de fumaça, os rostos suados e negros de quase cinquenta homens – tudo isso ficou gravado na minha memória como o Padre-nosso. E, desta vez também, passei horas a fio na debulha e senti-me extremamente bem. A máquina, quando trabalha, parece viva, tem uma expressão astuta, brincalhona, ao passo que as pessoas e os bois, ao contrário, parecem máquinas..."
E quem foi Tchékhov fora da literatura? Homem de origem simples, formou-se em medicina e a tinha como atividade principal. Dizia que a medicina era sua esposa e a literatura, sua amante (curiosamente, era a literatura que lhe garantia um aporte adicional de renda). Teve intensa atividade de cunho social e esteve envolvido no trabalho de construção de escolas. Em 1890, aos trinta anos, partiu para a ilha de Sacalina, local de prisões mantidas pelo regime czarista no mar do Japão, empreitada que o fez atravessar a Rússia pela Sibéria até chegar no oceano Pacífico. Lá estando, entrevistou todos os moradores-detentos, o que lhe possibilitou um retrato detalhado da situação e características do sistema prisional russo. De volta a Moscou, elaborou um dos trabalhos mais completos sobre o assunto, cujo impacto foi suficiente a ponto desse sistema ser revisto pelo regime czarista.
Em seu precoce final de vida, seus contos cresceram em tamanho e densidade e perderam o humor que os caracterizava. O livro "O assassinato e outras histórias" (Cosac&Naify, 2002) contém seis contos desta fase, escritos entre seus trinta e quatro e quarenta anos de idade (morreu enfraquecido pela tuberculose, em 1904, aos quarenta e quatro anos). Retiro um trecho do conto "O assassinato", uma história que, certamente, começou a ser germinada em 1890, quando de sua estada em Sacalina; portanto, cinco anos antes de ser escrita, em 1895:
"Certa noite, na enseada de Dveski, na ilha de Sacalina, um vapor estrangeiro ancorou e solicitou carvão. Pediram ao comandante que esperasse amanhecer, mas ele não queria esperar nem uma hora, dizendo que, se o tempo piorasse durante a noite, corria o risco de ter de partir sem carvão. No estreito da Tartária, o tempo pode mudar abruptamente em meia hora, e então o litoral de Sacalina torna-se perigoso. O ar havia esfriado e já se formavam ondas bastante fortes.
Da prisão de Voievódskaia, a mais miserável e severa das prisões de Sacalina, despacharam um grupo de detentos para uma mina. Tinham de encher barcaças com carvão, depois rebocá-las com uma lancha a vapor até o navio, que estava a mais de meia versta* da margem, e lá seria preciso começar o transbordo do carvão – um trabalho torturante, enquanto a barcaça se entrechoca com o navio e os trabalhadores mal conseguem se manter de pé, por causa do enjoo..."
* Versta: unidade de medida russa, equivalente a 1,067 Km.
Sei que poderia ter escolhido um trecho de outro conto, que fosse mais alegre ou, até mesmo, cativante. Procurei apenas mostrar o que faz dele, para mim, um escritor especial: um talento extraordinário para escrever e um caráter da mesma envergadura deste talento.


Abraço,
Nelson Safi

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