quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O tradutor traduz o autor?


Quando um autor é bom a gente logo percebe. E todo mundo sabe, cada um tem seu jeito de escrever, o que obviamente explica o fato de alguns agradarem mais do que outros. Se estamos falando de textos em nossa língua, mesmo com as nuances regionais, seja qual for a região do planeta, ainda assim será a nossa língua.

E o que dizer dos autores estrangeiros? Em algum momento chega a informação de que fulano é um bom escritor e alguém decide publicá-lo em português (vamos fazer de conta que é simples assim). É evidente que as editoras contam com tradutores qualificados, pelo menos é o que se espera. Como garantir que o jeito especial do autor se expressar, a maneira como ordena suas frases que dá um sentido (ou vários) ao que pretende dizer será alcançada na tradução? Pois é, não é fácil, nada fácil. O tradutor é, de certa forma, um escritor. Aliás, muitos escritores conhecidos são ou foram tradutores. Aqui no estado temos e tivemos vários e, sem querer ser bairrista, creio que de boa qualidade em sua maioria.
Do meu mais profundo "achismo" vem a convicção de que o trabalho de tradução é tão desgastante que, mesmo sendo ele um escritor, não sobrará fôlego para escrever o seu próprio texto. Acredito que o tradutor gaste tanta energia e talento para reproduzir em sua língua o autor original, que pouco ou nada sobre para ele próprio.
E qual seria o maior dilema do tradutor durante a sua maratona profissional? Com certeza ocorre quando este se depara com uma palavra, situação ou expressão que, em hipótese alguma, teria correspondência em nosso idioma. É a hora em que o tradutor tem que ser infiel para ser fiel (estou aqui fazendo uso de uma expressão que o Sergio Faraco utilizou em uma palestra que tive a felicidade de assistir). Ou seja, para preservar a literariedade, a qualidade do autor original, o tradutor se vê obrigado a inventar ou, então, utilizar outra expressão que alcance o mesmo impacto. De tradução o Sergio Faraco entende muito, é dele a melhor versão em português de um livro do uruguaio Mario Arregui, "Cavalos do amanhecer" (L&PM), cujo título original é "Los dos caminhos" (onde estão os cavalos do título?). Mas lendo-se o livro, fica tudo muito claro (para se ter uma ideia da seriedade do trabalho, basta dizer que a tradução foi acompanhada de perto pelo Arregui, que concordou com as modificações). Por outro lado, querem ver como é difícil? Façamos o inverso. Basta pegar um texto, do Guimarães Rosa, por exemplo, e imaginá-lo em alemão, japonês, russo. É tarefa para muito poucos, realmente.
Bem, a verdade é que toda essa conversa acerca de traduções seria para falar do livro "O Tenente Quetange", de I. N. Tyniánov (Cosac & Naify). Isso porque a tradutora, Aurora Bernardini, resolveu de maneira muito mais eficiente o jogo de palavras que dá nome ao livro (e origina toda a confusão). O livro é muito bom e engraçado, e vou pedir que confiem em mim sem que precise explicar a razão. Vou usar do velho recurso de reproduzir um texto da contracapa e contar que isso seja suficiente para despertar o interesse pela história:
"Correm os últimos anos do século XVII e Paulo I ocupa o trono de todas as Rússias, quando um escrivão militar, sonolento e estabanado, altera por acidente o curso da História ou, pelo menos, de uma história ou, melhor dizendo, de duas histórias..."

Ocorre que este livro tem outra história muito interessante, relatada no quase-prefácio de Boris Schnaiderman (responsável por algumas das melhores traduções de Anton Tchékhov). Ele conta um pouco da obra de Tyniánov, de suas peculiaridades, entre as quais o fato de ter permanecido ileso, tanto física como profissionalmente, durante todos os anos de Stálin, o qual por muito menos mandava despachar para um gulag.
Abraço,
Nelson Safi

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